A actualidade nos campos do Sul, a soberania alimentar e a luta por um outro modelo agrícola no Alentejo.
Intervenção de Inês Fonseca
Sessão “50 anos da Reforma Agrária”
Évora, 2 de Fevereiro 2025
A luta pela posse e uso da terra é um elemento integrante da identidade cultural alentejana e fonte dos principais processos de transformação social registados ao longo dos tempos. Em 2002, quando se fecharam as comportas da Barragem do Alqueva o sonho de muitos tornou-se pesadelo.
Desde esta data mais de 80% do território agrícola da região do Alqueva mudou de mãos, a especulação com o preço da terra por hectare aumentou, o capitalismo agrário floresceu, a concentração fundiária intensificou-se e a área de culturas superintensivas multiplicou-se. Só na área de Alqueva, o olival e o amendoal intensivos representam 82% das culturas.
Aproveitando a baixa rentabilidade de terras e agricultores em dificuldades, por políticas agrícolas europeias de estrangulamento, o capital financeiro tomou conta de muitas herdades para desenvolver produtos que não preenchem as nossas necessidades alimentares.
O sector agro-alimentar está nas mãos de corporações financeiras transnacionais que influenciam governos e políticas, decidem para onde vão os financiamentos e constroem fortes campanhas de propaganda de exaltação deste novo modelo. As culturas superintensivas são rebaptizadas como “olival moderno em copa” ou “amendoal em sebe”. A mão-de-obra imigrante, hoje no lugar dos ratinhos e caramelos, é contabilizada como crescimento populacional e o aumento de exportações e do produto interno bruto são apresentados como desenvolvimento económico e social.
A necessidade de elevar ao máximo a produtividade é vendida como uma inevitabilidade e até é virtuosa porque apenas desta forma será possível combater a fome no Mundo, escondendo que a fome aumenta de ano para ano e que, em 2023, cerca de 733 milhões de pessoas passaram fome, de acordo com o mais recente relatório das Nações Unidas.
A ideia de que a monocultura é o futuro e o minifúndio e a policultura são formas de produção obsoletas tem empurrado homens e mulheres para longe da vida agrícola, para as grandes cidades e para a emigração. Aqui não encontram forma de subsistência e o destino levou-os a procurar outras oportunidades.
Mas não foi o destino, nem uma fatalidade, que provocou o êxodo populacional e que perpetua o despovoamento. Foram as políticas públicas que não tiveram como objectivo as pessoas e sim o capital. Mas esta agricultura “tão avançada” não recorre apenas à mecanização e à monitorização, introduziu também as chamadas sementes melhoradas, excluindo as nossas variedades regionais, e recorre a adubos químicos, fungicidas e insecticidas, querendo tornar independente a fertilidade do solo do necessário equilíbrio ambiental.
Vulgarizou-se a utilização de fungicidas e pesticidas no combate a pragas e doenças porque a intensificação de monoculturas em áreas contínuas promove o surgimento de pragas. Com a homogeneização da paisagem, os processos ecológicos são simplificados, diminui a biodiversidade e o número de espécies. Só para percebemos onde isto chegou, hoje alugam-se abelhas que circulam pelo território para promover a polinização, porque afectaram de forma drástica o equilíbrio ambiental. Quando as culturas invadem as margens das áreas urbanas, convivendo paredes meias com habitações, a poluição ambiental prejudica as populações.
Estas culturas superintensivas vieram, muitas vezes, substituir olivais tradicionais já adaptados sem necessidade de rega. Num contexto de escassez hídrica, o uso da água deve ser avaliado e reflectir o seu verdadeiro custo. Esta e outras barragens foram construídas com dinheiros públicos e não podem estar ao serviço de sociedades financeiras. Exige-se que a água cumpra em primeiro lugar uma função social.
Os problemas, como o do tratamento do bagaço da Azeitona, ficam para as populações que resistem, como a povoação de Fortes, em Ferreira do Alentejo que vive uma situação dramática, junto a uma unidade de tratamento deste subproduto, a que os responsáveis governamentais parecem indiferentes.
Outra falácia muitas vezes utilizada é quando nos dizem que vão buscar imigrantes porque não há quem queira trabalhar. Se querem pagar uma miséria pelo trabalho agrícola, não encontrarão localmente mão-de-obra disponível. Estes trabalhadores do Bangladesh, do Paquistão ou do Nepal vivem amontoados em espaços diminutos ou estruturas precárias, são mal remunerados, povoam as ruas e amontoam-se em praças à espera de trabalho. A presença destes povos na região é encarada pelos habitantes como um mal necessário e não se criam empatias nem ligações. A distância entre os costumes e a língua e a rotatividade dos trabalhadores entre locais dá espaço à indiferença, criando, sentimentos de desconfiança e insegurança. Estes imigrantes preenchem postos de trabalho, cujas prestações ajudam ao equilíbrio do sistema de segurança social nacional. Em 2023 a população migrante contribuiu com 2677 milhões de euros para a Segurança Social.
Os últimos anos trouxeram a público muitas situações de escravatura humana relacionada com o trabalho na agricultura, mas a propaganda é mais forte, escondendo os verdadeiros beneficiários deste trabalho, e esta imagem negativa do agronegócio vai sendo abafada.
Ao mesmo tempo, os que clamam que a sua mão de obra é indispensável, são os mesmos que promovem e financiam o ódio contra eles, alimentando divisões entre trabalhadores.
A perda da genuinidade do azeite português resultante da utilização quase exclusiva de espécies estrangeiras adaptadas é uma questão importante. O reconhecimento da qualidade do azeite produzido em Portugal está relacionado com as variedades usadas, designadamente a Galega, espécie bastante resistente à seca e adaptada ao nosso clima.
Mas se mais nenhum problema existisse, podemos falar apenas da alteração que está a ocorrer na paisagem que constitui parte da nossa identidade colectiva e que vendemos em catálogos de experiências turísticas. Transformaram os campos de trabalho em destinos turísticos. As viagens turísticas são o contraponto aos imigrantes que circulam para trabalhar no território.
A procura deste território para turismo será necessariamente posta em causa pelas culturas superintensivas, pelas pulverizações frequentes, pelas máquinas que trabalham desde a 6 da manhã, pela dificuldade crescente em conseguir alimentos de qualidade produzidos localmente, e consequente perda de autenticidade da nossa gastronomia e do nosso património.
Num mundo cada mais vez hegemónico, a cultura de um território tem tendência a diluir-se. E a nossa cultura é baseada na agricultura, e apesar de sentimentos contraditórios associados a períodos muito duros na nossa história, é esta que nos enriquece e cria sentimentos de pertença.
Hoje estamos a assistir a um desastre programado. A procura turística e o número de imigrantes para trabalhar aumenta na razão directa dos que deixam este território.
O agronegócio, com o seu crescimento ultra-rápido, constitui um sistema predador que alastra a outros sectores da sociedade que é necessário compreender para superar. Não devemos esquecer que a agricultura é uma parte fundamental da saúde humana e não uma mera forma de produção de mercadorias para aumentar o produto interno bruto.
Importa formar consciência e capacidade crítica, envolvente as populações, para perceber que este caminho não nos trará futuro.
A actualidade exige que se desenhe uma alteração fundiária, que se concretize uma nova reforma agrária; exige que se assegurem políticas nacionais e uma outra Política Agrícola Comum que salvaguardem a segurança e soberania alimentar; que privilegiem a produção nacional; que apoiem a agricultura familiar, os pequenos e médios agricultores; que coloquem a agricultura como motor de desenvolvimento económico local e garante do equilíbrio ambiental;
São grandes os desafios que se avizinham e ficam as perguntas: num cenário de crescimento galopante de produção de azeite, como é possível que as famílias não tenham dinheiro para o comprar? Porque importamos a maioria das farinhas que consumimos?
A agricultura tem que ser parte da solução para o emprego, para a soberania alimentar, para o restabelecimento de equilíbrios demográficos no espaço rural.
Como vamos conseguir alcançar estes objectivos? Quem são as estruturas agrícolas, públicas ou associativas, que existem? Como levaremos em frente uma nova reforma agrária? E com quem?
Podem contar connosco!