Intervenção de Vitor Rodrigues na Sessão Pública do PCP “50 Anos da Reforma Agrária”
Évora, 2 de Fevereiro 2025
Ao celebrarmos os 50 anos da Reforma Agrária de Abril, assinalamos não apenas a mais bela conquista da Revolução portuguesa, mas também a concretização de um sonho secular dos proletariado rural do Sul do País. Logo após a implantação da República, em 1910, os trabalhadores agrícolas mobilizaram-se e organizaram poderosas lutas, afirmando projetos de socialização da propriedade e dos meios de produção agrários. São também deste período os primeiros projetos de reforma agrária, visando o desmantelamento do latifúndio desaproveitado, e o impulso do desenvolvimento da agricultura, por exemplo, com os primeiros planos respeitantes ao regadio.
O latifúndio é o elemento fulcral para a compreensão do processo de Reforma Agrária que se seguiu ao 25 de Abril. Falamos de cerca de um terço do território nacional coberto por grandes e muito grandes propriedades, as mais das vezes em abandono ou subprodução, nas mãos de proprietários absentistas, que sujeitava uma enorme massa de trabalhadores a feroz exploração, repressão e degradantes condições de vida, constituindo-se, a par dos monopólios e da submissão ao imperialismo estrangeiro, um dos pilares fundamentais do fascismo em Portugal.
É com a alvorada libertadora de Abril, com as profundas transformações democráticas que se lhe seguem, mas também por causa da ação sabotadora e reacionária dos grandes agrários, após perderem os privilégios de meio século de fascismo, que a necessidade de avançar para a Reforma Agrária se torna uma urgência inadiável.
A primeira conquista da Reforma Agrária de Abril é ser resultado da decisão organizada e consciente do proletariado rural, respondendo com ação própria às exigências da situação revolucionária criada. Decisão e ação indissociáveis de décadas de lutas heroicas, e da intervenção corajosa do nosso Partido, o Partido Comunista Português. Como disse Álvaro Cunhal, na Conferência que hoje aqui evocamos e que constituiu a grande arrancada para a Reforma Agrária, esta deu os primeiros passos pelas mãos dos trabalhadores, que assumiram a materialização da palavra de ordem “a terra a quem a trabalha”. Decisão e ação também indissociáveis do surgimento, na legalidade, de um movimento sindical que, desde a primeira hora, tomou a dianteira na luta pela melhoria das condições de trabalho e de vida dos seus associados.
Desde a primeira ocupação em Dezembro de 1974, até à consagração constitucional a 2 de Abril de 1976, passando pela decisão colectiva de avançar para ela assumida na 1ª Conferencia dos Trabalhadores Agrícolas do Sul, organizada pelo nosso Partido, e ainda pela publicação das primeiras leis da Reforma Agrária, falamos de um processo de profundas transformações revolucionárias, com repercussões não só no Alentejo e Ribatejo, mas em todo o País, e até a nível internacional.
Uma segunda conquista da Reforma Agrária de Abril foi o da sua originalidade, a qual teve expressão maior no surgimento da UCP, a Unidade Coletiva de Produção, estrutura que organizava o trabalho, a produção, os investimentos produtivos e as melhorias sociais dos trabalhadores agrícolas, e que era, em primeiro lugar, dirigida por estes. Não se tratava de herdades do Estado, nem de cooperativas de produtores (embora muitas ostentassem o nome de cooperativas). Nem sequer chegaram a ter, pelo menos por iniciativa estatal, a propriedade da terra que cultivavam, a qual sempre foi tratada como um bem comum e um instrumento destinado à produção, ao emprego, à vida digna a que aspiravam os trabalhadores agrícolas.
Entre 1975 e 1978, foram criadas 550 UCPs, as quais chegaram a ocupar 1 milhão 140 mil hectares, cerca de um terço da superfície agrícola da Zona de Intervenção da Reforma Agrária, que abarcava o Alentejo, o Sul do Ribatejo, e partes dos distritos de Lisboa, Castelo Branco e Faro.
Uma nova forma de organização económica havia nascido, de caráter democrático e socialista. Mas as UCPs não se encerravam em si mesmas. Elas foram, por um lado, objeto de solidariedade de largas massas de trabalhadores de vários setores em Portugal, e também objeto da solidariedade dos países do campo socialista, que lhes ofereceram elevadas quantidades de máquinas, alfaias e outros fatores de produção, a que se somou ainda a solidariedade de trabalhadores dos países capitalistas.
Por outro lado, sempre procuraram aprofundar formas de cooperação e estruturação entre si. É neste quadro que se realizaram, entre 1976 e 1989, as 12 Conferências da Reforma Agrária, momentos fundamentais da vida da Reforma Agrária de Abril, de balanço, decisão e perspetivação do futuro, cujo legado para a compreensão deste processo é de uma enorme e incontornável dimensão.
Solidariedade que a Reforma Agrária estendeu aos pequenos e médios agricultores do Sul e de outras regiões do País, não obstante alguma episódica fricção aquando de ocupações de terras.
Essa nova forma de organização económica, de caráter revolucionário, democrático e socialista, foi consagrada em letra de lei através de cinco decretos, datados de 29 e 30 de Julho de 1975, pela ação do IV Governo Provisório, chefiado por Vasco Gonçalves, e tendo Fernando Oliveira Baptista, aqui presente, como Ministro da Agricultura e Pescas. A Reforma Agrária foi consagrada na Constituição da República Portuguesa, aprovada e promulgada a 2 de Abril de 1976, com o importante contributo do seu maior impulsionador e defensor, o Partido Comunista Português.
Os avanços políticos e organizativos da Reforma Agrária são indissociáveis das suas conquistas produtivas, económicas e sociais.
Desde logo, no capítulo do emprego, sempre uma preocupação central na Reforma Agrária de Abril. A 1ª Conferência da Reforma Agrária, realizada em 1976, relatava a criação de 50 mil novos postos de trabalho, dos quais 33 mil eram permanentes, praticamente quatro vezes mais do que antes. A defesa do emprego foi uma preocupação constante de todo o processo, bem como a aproximação dos salários das mulheres aos dos homens, ou a implementação de incentivos para determinadas tarefas, como as dos pastores.
No capítulo da produção, os avanços foram verdadeiramente espetaculares. Já em plena ofensiva contra-revolucionária, em 1980, chegou-se a semear 316 mil hectares, também quatro vezes mais do que antes da Reforma Agrária. Se o aumento da produção de cereais atingiu os 46 pontos percentuais, com mais 249 mil toneladas produzidas em 1976, o aumento da área semeada de sequeiro, que a levou a atingir os 270 mil hectares, ficou a dever-se sobretudo a grandes aumentos nas áreas semeadas com oleaginosas e leguminosas. As áreas de regadio chegaram a tingir os 30 mil hectares, dominadas pela expansão do tomate, do arroz, do milho-grão e de outras hortícolas, cujas quantidades produzidas tiveram também enormes aumentos, como as 19 mil toneladas a mais no arroz ou as 68 mil toneladas a mais na produção de tomate.
Na produção animal, mesmo com as contrariedades devidas à peste suína africana, o número de cabeças normais de gado aumentou de 130 mil em 1976 para 167 mil em 1978, conjugando o crescimento de 17 mil cabeças de bovinos e de 47 mil cabeças de ovinos e caprinos. A produção de leite, de queijos ou de lã teve também aumentos consideráveis.
A Reforma Agrária diversificou culturas, introduzindo o girassol híbrido e o cártamo, criou campos experimentais para várias delas, e introduziu processos inovadores na produção e secagem de tabaco e em culturas sob forçagem.
No capítulo da mecanização e dos investimentos produtivos, somaram-se centenas de tratores, camiões, alfaias, motores de rega, captações de água. Foram realizadas mais de 300 novas construções e instalações para gados, e beneficiados 144 mil hectares.
No plano social, a Reforma Agrária, em articulação com o Poder Local Democrático, impulsionou escolas, creches, postos de saúde, centros de dia e cooperativas de consumo. Apostou na formação política e profissional dos seus trabalhadores e dos seus filhos. Celebrou o emprego nas UCPs dos primeiros filhos de trabalhadores rurais que tinham obtido formação superior.
É esta verdadeira epopeia colectiva (que aqui apenas se retrata em pinceladas largas), que nos permite afirmar que , tal como a Revolução de Abril, também a Reforma Agrária é mais futuro, um testemunho e um guia para a nossa luta de hoje e de sempre. Nestes tempos conturbados e de resistência, continua a ser, como disse o poeta, “uma certa maneira de cantar”.
Viva a luta dos trabalhadores!
Viva a Reforma Agrária!